A omissão da verdade ou a parcial revelação da mesma torna-se uma alternativa ética quando valores como a dignidade e a própria vida humana estão em jogo.

Em uma mesma rua viviam os Millers e os Bergsons. As duas famílias eram muito amigas. As crianças haviam crescido juntas, as esposas visitavam-se todas as tardes e os senhores Miller e Bergson eram parceiros no jogo de tênis. Tudo caminhava bem até Hitler subir ao poder e o nazismo se tornar a ideologia do Estado alemão.

 A partir daí, os Bergsons, juntamente com outras famílias judias que moravam na Alemanha, começaram a sofrer todo o tipo de perseguição por parte dos nazistas.

 Toda a atmosfera anti-semita, porém, não afetou a amizade entre Millers e Bergsons. Em um determinado dia, os Millers ouviram que muitos judeus estavam sendo deportados para Auschwitz onde deveriam ser mortos. Assim, a família alemã resolveu esconder seus amigos Bergsons em sua casa até estes encontrarem um jeito de sair do país.

 Depois de algumas semanas, um oficial alemão bateu à porta dos Millers. O senhor Miller atendeu o oficial com muita cordialidade. Este, ao entrar na casa, foi logo ao assunto: “O senhor possui uma ótima reputação. É visto como uma pessoa honesta em todo o bairro, por isso eu vim lhe perguntar se o senhor tem alguma notícia sobre a família Bergson. Por acaso, alguém de sua família sabe se eles viajaram?” O honesto senhor Miller respondeu com certa admiração: “Os Bergsons? Faz algumas semanas que não vemos ninguém na casa ao lado!”   …

 Para se dizer “verdade” ou “verdadeiro” em hebraico utiliza-se a palavra “emet” que significa, ao mesmo tempo, confiança. Um Deus verdadeiro ou um amigo verdadeiro são aqueles que cumprem o que prometem, ou seja, são fiéis.

 Aqui a verdade está intimamente relacionada com a espera de que aquilo que foi prometido irá cumprir-se ou acontecer. Portanto, em hebraico, a verdade tem a ver com o futuro, com a concretização de algo que deve ser realizado. “Amém”, que significa “assim seja”, possui, por exemplo, sua origem na palavra “emet”.

 Os gregos, por sua vez, utilizavam para designar a verdade a palavra “aletheia” que significa “não-oculto”, “não-escondido”. O verdadeiro é aquilo que se manifesta aos olhos do corpo e do espírito. Aletheia, portanto, está relacionada ao presente, ao que as coisas são. Já a palavra latina “veritas” se refere aos fatos que já aconteceram, ou melhor, à narração exata dos fatos acorridos.

 A verdade em latim é um olhar para trás. A nossa definição atual de verdade constitui-se em uma síntese destas três concepções: ela se refere às coisas do presente (aletheia), à narração dos fatos passados (veritas) e à confiabilidade e fidelidade do futuro (emet). Uma das condições básicas para dignidade humana é possuir a característica da veracidade, ou seja, ser verdadeiro significa ter uma visão precisa da realidade, ser coerente com ela e manter-se fiel transmitindo confiabilidade.

 Não manter a verdade consiste em um declínio de vida e da própria dignidade, afirma Tomás de Aquino. As relações humanas (convivência, amizade, negócios…) tornam-se comprometidas a partir do momento que a veracidade deixa de estar presente. A mentira é um poderoso veneno em nossa dimensão interpessoal.

 Veracidade não significa, porém, dizer a todos tudo o que se pensa e muitas vezes para se fazer um bem é necessário ocultar a verdade. Portanto, quando nos questionamos sobre a revelação da verdade, não podemos esquecer que a “veracitas” deve estar sempre acompanhada de outras virtudes como, por exemplo, a prudência, a discrição, o amor e a justiça.

 Muitas vezes, a resposta para a insistência alheia é a discrição. “Meu amigo tem um amigo, o amigo do teu amigo tem outro amigo… Portanto, seja discreto!” (Talmud).

 Ao sermos simplesmente transparentes corremos o risco da “veritas homicida”, da qual nos fala Agostinho, ou nos vemos contagiados pela “verdademania”, ou seja, a verdade a qualquer preço muito criticada por Kant.

 Existem situações que fazem com que a verdade seja tão condenável quanto a mentira, ou seja, as duas alternativas nos levam a um grande prejuízo. “Sobre a mentira e a verdade/ desabam as mesmas penas/ apodrecem nas masmorras/ juntas, a culpa e a inocência” (Cecília Meireles).

 Tomás de Aquino, apesar de não oferecer uma solução clara para o assunto, explica que é permitido, de uma maneira prudente, disfarçar ou encobrir a verdade.

 A omissão da verdade ou a parcial revelação da mesma torna-se uma alternativa ética quando valores como a dignidade e a própria vida humana estão em jogo. Portanto, para possuir honestidade, não basta a transparência, se faz sempre necessário o questionamento:  qual o sentido de minha honestidade? Ela está servindo a quem?

 Pôncio Pilatos, o procurador romano que estava no governo da Judéia, ao interrogar Jesus perguntou-lhe o que era a verdade. Segundo o Evangelho de João, Jesus se silencia diante da questão.

Extraído de: Faça uma revolução possível,  Padre Beto, Ed. Marco Zero